Nas oficinas de Escrita tive de escrever sobre as minhas memórias de infância! Entre, escrevo ou não escrevo? Aconteceu mesmo ou serão partidas da minha memória? Apetece-me fazer essa viagem tão profunda ao meu eu? Serei suficientemente "crescida" para escrever sobre partes da minha criancice?
Nunca pensei que fosse
tão difícil escrever sobre mim. Deixar preto no branco, sem floreados e
personagens, a minha origem, a complexidade das minhas memórias de infância,
a base do que sou hoje. Não me darei a conhecer na totalidade e nem mesmo todas as minhas memórias de infância porque nem todas
estão devidamente relembradas e trabalhadas no meu íntimo ao ponto de as
transpor e escrever. Nem darei a conhecer todas, não por vergonha, mas
pelo medo de não as conseguir dignificar e homenagear como pretendo. Como
recordo.
Irei sim,
dar a conhecer uma pequena parte do que tanto procuro amarrar e colar no
coração todos os dias, com medo que se perca. As memórias da
minha infância até aos cinco anos. A recordação dos que me trouxeram a este
mundo até ao dia que fiquei sem eles!
Ticas Graciosa! Alcunha adoptada pela minha irmã mais velha em troca do meu nome de batismo, Maria Teresa. Depois, fui-me apercebendo da
existência do nome de família “Graciosa”, pelas vezes em que tias me agarravam
as bochechas sardentas e me diziam que só podia ser Graciosa! E assim fiquei até
hoje, a Ticas Graciosa para os amigos.
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Os meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos. Nessa altura, vi-me obrigada a trocar o ar seco e a paisagem vasta e agreste da Beira Baixa em tons amarelados, recheada de magníficos penedos e imponentes sobreiros, pelo clima ameno e menos campestre da Beira Litoral, onde fui viver para um palácio cujos muros nem sempre conseguiam esconder outras casas mais pequenas mas dentro da sua beleza ainda me permitia sonhar. Aí, vivíamos num casarão onde podia correr para ir à casa de banho e esconder da minha avó todos os pães que não queira lanchar, até ao dia em que era apanhada e tinha de os comer a todos em sopas de leite, como castigo. Tive a graça de nascer e crescer no seio de uma família enorme que, entre quintas e cavalos, cães e touros, bicicletas e cavalgadas, nos fomos conhecendo, entendendo e entrelaçando! |
Perdi os
meus pais mas ganhei uma ligação especial com os avós, tios e primos. Cada um
acabou por ter no meu coração um lugar especial. Ainda relembro com prazer
quando nos chamavam a mim e à minha irmã, por nesse tempo sermos unha com
carne, as “Ticas” ou “As manas catatuas, quem leva uma leva as
duas”.
Os cães eram amigos, sempre tão pacientes, e com eles partilhava em brincadeiras tanto do meu tempo. Agarrava-os, trocava os chupa-chupas, punha-lhes óculos de sol,
tirava-lhes os óculos de sol.
Não tinha problemas com a roupa, se sujava ou não
sujava. Lembro-me apenas que brincava despreocupada.
Rio-me e
volto a ter a mesma sensação de medo e borboletas na barriga quando recordo a
brincadeira que fazíamos com os primos mais velhos. Corríamos atrás de um pónei
no meio da pastagem, até este pelo seu feitio especial se zangar e cavalgar atrás de nós para nos
morder. A sensação de ser puxada
pela minha prima Maria – mais velha que eu, com a peculiaridade de ter um olho azul e outro
verde que me fascinava – ainda hoje se faz sentir.
Os piqueniques nas pastagens entre os sobreiros com os meus pais e
amigos. As correrias e brincadeiras e mais uma vez a sensação de liberdade!
Os
jantares inesperados e preparados em instantes para muitos que, nas noites de verão, se faziam na mesa de pedra comprida em frente à casa grande. Num desses jantares e já
depois de escurecer, ao tentar ir buscar fio dental para limpar os dentes,
inclinei o armário fino e alto da casa de banho. Sem me aperceber que no topo
deste estava um autoclismo de loiça continuei a puxar a gaveta do armário e a peça
de loiça foi direta à minha cabeça. Chorei e chorei e, nessa altura, o pátio
ainda me pareceu maior! Até conseguir reencontrar, entre a pouca luz e os
muitos convidados, o colo, o conforto, os braços da minha mãe estive em
pânico! Evidentemente, fui para o hospital, levei dois pontos e chorei
imenso. Ao meu lado, estava um rapaz também com os seus cinco anos que enfiara
um amendoim numa das narinas e não conseguia retirá-lo! Aquela visão ainda me
fez chorar mais e, de barriga para baixo com uma mão dada ao meu pai e a outra
à minha mãe, chorei e chorei. A cicatriz mantem-se e quando a sinto é bom
relembrar aquelas mãos comigo.
O prazer que me dá relembrar a noite em que, suponho devido ao calor que se faz
sentir naquela zona da Beira Baixa no verão, 40ºC, secos e sem qualquer aragem
de ar fresco, fui com os meus pais, irmã e mais alguém que não me recordo,
colar placards de uma
tourada pelas paredes da vila. O cheiro da tinta, a adrenalina de estarmos ali
de noite, o vento que apanhávamos na carrinha de caixa aberta, o delírio de
estar acordada àquela hora e com os crescidos fora tão intenso que facilmente
viajo para essa noite.
E outras,
como as noites em que o meu primo José Maria, depois de caçar aparecia em nossa
casa. E eu, que já estava na cama, levantava-me para ir espreitar aquele
“homem” sentado no nosso sofá com uma faca à cintura. Na altura tinha medo
daquela figura e o medo criava-me a curiosidade suficiente para arriscar sair
da cama e levar um castigo.
Da minha mãe, guardo a paciência com que nos vestia de manhã para a
escola, as vezes que se agarrou a nós como escudo para nos proteger, as suas
gargalhadas e boa disposição. O vestido de fada azul que usei no carnaval e
creio que foi cozido por ela. O entusiamo com que assistiu à peça de teatro em
que vestida de amarelo fiz de pitinho e ao som da canção:
,apenas tinha de subir uma pedra da calçada
colocada no palco e no momento certo cair e levar a palmada da mãe galinha. Mal
sabia a galinha que eu, pintinho sardento em palco, não ia gostar de levar uma
palmada e em frente à plateia dei uma palmada na mãe galinha. Sei que estava na
plateia, não tenho presente a reação mas ainda hoje canto esta música aos mais
pequenos, ainda hoje imagino, se como divertida que era sorriu ou se como mãe
me ralhou…Guardo um grande amor e principalmente no pouco tempo que teve comigo
o quanto me mimou! Não era perfeita e no meio de um rebuliço tão intenso quem
se vai aguentando corre o risco de atingir a perfeição ou ser cruxificada pela
culpa do vendaval. No meu coração para além das imensas saudades deixou a
curiosidade das causas, do que a manteve ali, o espanto do que o amor e medo
podem causar. Guardo o seu sorriso e choro disfarçado, as vezes que me deu colo
e embalou para que as minhas lágrimas parassem como caem hoje simplesmente por
ter saudades de dizer “mãe”! É difícil manter as lembranças, descolar da palavra
mãe a figura que tive e relembra-la é tarefa que faço de
quando a quando para que nunca seja só e apenas uma figura em fotografias mas permaneça viva
pelo que realmente foi e deixou em mim!
“Pintinho pintinho
pintinho Piu,
Subiu numa pedra depois caiu!
A dona Galinha ficou zangada,
Pegou
no pintinho e deu-lhe uma palmada!”
O meu pai… Talvez pelo seu temperamento menos constante deixa bastantes
silêncios nos meus pensamentos e algumas memórias que preferia que fossem
falsas e imaginárias, mas não o são. Aprendi a lidar com elas, percebi que
quando se ama não se esquece mas perdoa-se!
Recordo o Natal em que recebi a minha bicicleta azul e branca com rodinhas
atrás. Lembro-me de estar no Páteo grande da quinta envolvido pelas casas,
picadeiro, boxes para os cavalos e com larga vista para as pastagens repletas
de sobreiros com o cabeço em segundo plano recheado de penedos. Foi neste
Páteo, onde ainda se conseguia avistar uma das barragens, a mais pequena, que, empurrada
e ajudada pelo meu pai dei as primeiras pedaladas na bicicleta
que tanto me acompanhou nos anos seguintes onde sem travões desbravava caminhos
e acelerava nas corridas entre primos.
Sentia-me livre naquele ambiente. Os dias passavam-se entre bezerros, passeios
a cavalo na Toma, égua do meu pai, tão mansa que nos deixava montar para
sermos passeadas sem guia, apenas seguindo a figura dele que caminhava devagar
ao lado da sua cabeça. Recordo com carinho e saudade o aconchego de me
enroscar à noite no sofá entre os meus pais. A vontade que ainda hoje sinto de
voltar atrás para voltar a ser a intrusa entre os dois, naqueles momentos
mágicos. Recordo ainda as viagens no Citroen encarnado em que adormecia a ouvir
as músicas dos Gipsy Kings. Ao ouvi-las ainda me emociono, talvez porque me
trazem um bocadinho deles, talvez porque sei que em tempos as ouvimos
todos juntos!
Uma
recordação mais carinhosa traz-me de volta as vezes em que os meus avós iam
passar uns dias à Beira Baixa. Nessas alturas, a avó, sempre prática e
despachada, contornava-nos os pés numa folha branca com uma caneta, para, da
próxima vez que voltasse, nos trazer sapatos. Mal sabíamos então, que poucos
anos depois, o destino aproximaria mais ainda os nossos corações e faria
com que nos amássemos como mãe e filha.
Estas e outras lembranças ainda por aprimorar até poderem ser
registadas com a dignidade que merecem, são algumas das muitas que a criança
que eu fui guarda a sete chaves no segredo do coração. Por agora, deixo aqui
algumas.
Haverá outras, tantas e tantas, das várias fases da minha vida, que serão
registadas, talvez em forma de romance, talvez fantasiadas. Para poder
introduzir-lhes as presenças maravilhosas das fadas e dos duendes do mundo
mágico a que todas, ou pelo menos quase todas, as crianças e adultos têm
acesso.
Caso os duendes não se enquadrem no meu mundo e as fadas percam a varinha mágica, sairá em forma de biografia para dignificar quem amo e, quem sabe, ajudar a que outras crianças possam recordar as suas memórias de infância com os que amam perto!