quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

27 anos!




Quando nasci já se previa que não seriamos todos para a vida toda.
Seria impossível sentirem-no pois eu nasci apenas contigo. 
Fomos as duas no nosso corpo e demos-lhe a mão. À querida amiga que te levou comigo.
Fomos as três e naquele último dia da Primavera nasci. Sem ti.
Sem ti para apoiares a mãe, sem me quereres ver, sem saberes se estaríamos bem.
Nasci e estou aqui. Sem ti.

Ao contrário do que achavas, ao invés do que te fizeram tanto crer eu era afinal tua filha. 
E se dúvidas existiram, se novelas e mentiras graves foram criadas durante anos sobre a mãe - aquela que tanto amaste - as dúvidas morreram por terra.
Não quero imaginar a dor que terá sido enquanto mãe, tua mulher e pessoa.
E ainda assim manteve-se ali.

Sou a tua cara pai. Sempre a tive. 
Tenho de ti o lado Graciosa.
Mas ainda isso não bastou para acreditares. Ainda isso não bastou para que outros também vissem.

Há 27 anos o vosso sofrimento terminou. 
A vossa tragédia parou ali mas a minha dor continuou.
Este dia foi tão avisado por tantos. Ameaçado por ti várias vezes, presenciado por mim e denunciado pela mãe aos que lhe estavam mais próximos.
O dia ia chegar, só não estava no calendário mas ia chegar.

E foram vários os anos em que ainda acordava a achar que tinha tudo sido um sonho e vocês iam chegar e entrar pelo quarto dentro...

Não te culpo apenas a ti. Vejo uma sociedade na altura marialva e bastante retrógrada, onde o divórcio era mal aceite e se as mulheres o queriam alguma "coisa" não estava bem.
A essa coisa alguns não quiseram dar os devidos nomes e preferiram falar em traições, outros homens, amantes.
Acredito que em muitos casos aconteça mas neste não.

E tu pai na altura davas os ouvidos, os olhos, os braços, tudo pelo que ele te dizia. Parecia o iluminado, Deus no Céu e ele na Terra. 
Como é que não ouviste os que vos queriam aos dois bem?
Porque é que te deixaste guiar por quem queria dor e sofrimento? 
Por quem te afastava de Deus e psiquiatras?
Porque assim teve que ser!
A mente humana tem emaranhados que desconhecemos e bem mais complexos do que pessoas fracas de espírito e tão cheias de si te poderiam dizer.

O teu amor versus ciúmes dançaram em pontas dos pés demasiados anos numa corda suspensa entre dois grandes penhascos, 
Tiveste pessoas que te tentaram ajudar e acompanhar. Outros, preferiram acender o rastilho e ficar a ver até onde o embalo que tinham dado levava a corda. 
Parecia um jogo de orgulhos, uma guerra de preconceitos e ideias que não eram as tuas, que não partiram de ti pai. 

E foi isso mesmo, um jogo sujo e inglório. 
A cada avanço, um puxão. 
A cada tentativa de serenar, um abanão ainda pior que o outro.
E eu ali no meio. 

Faz hoje 27 anos que a corda roeu. 
Mataste a mãe e depois suicidaste-te.
Naquele dia deixei de vos ter, mais ou menos aninhados, mais ou menos chateados, deixei de vos ter.
Deixámos de ser nós, para serem vocês algures...só os dois.

E nós os dois onde ficávamos?

Faltava resolver-te pai. 
Faltava resolver a forma como vivemos naquelas paredes, a forma como tudo acabou.
Começou a fazer-me falta sentir que tudo tinha um sentido. 
Não queria continuar a chorar nos corredores do colégio ou no colo de uma freira sempre que um miúdo mais maldoso usava a vossa morte para me magoar.
Fiz sozinha esse caminho. Miúda ainda, procurei formas de vos e nos encontrar.

Foi um caminho penoso de fazer, ouvi verdades, meias verdades tão ou mais perigosas que as mentiras e outras atrocidades. 
Os que tens como teus, refugiaram-se como sempre no silêncio ou em poucas palavras cheias de tão pouco e envoltas em lágrimas. Um deles, o que tanto jubilavas, foi um pulha. E desculpa mas não tenho outra palavra.
Enquanto o avô, teu pai, se sentou no carro da minha mãe no enterro e foi não só ali como em tudo sempre um Senhor, este teu irmão tirou de mim o que nunca senti e disse de ti.
Gritou-me que a mãe te enganava e que no meio de toda a mentira e loucura tinha sido a culpada de tudo.
Pois é pai. E na altura, foi a única vez que tive que por a palavra assassino na minha boca para me referir a ti. 
Tive que lhe dizer que o assassino tinhas sido tu e se ainda assim achava que a culpada de tudo era a minha mãe?
Desculpa. Não és isso nem nunca o serás para mim, mas não podia deixar que mais uma vez a espezinhassem, fizessem de ti um coitadinho e nos apunhalassem a todos no coração de forma tão desumana.

Desculpa se hoje te falo nisto mas tem-me estado anos e anos entalado. 
Achei que tinha desculpado mas afinal mal engoli. 
Talvez porque na altura acreditei que haveria ali um amor maior dele por mim, como também tu terás achado, mas não pai. 
Foste enganado e eu também, e já viste nunca por ela.
Que as pontas das cordas fiquem com quem tenho a certeza as carrega todos os dias!

Não estou presa a imagens, nem tenho de arranjar desculpas para a minha história.
O meu amor de filha não se deixa sequer abalar pelo que fizeste.
Não vive de vergonhas ou medos de rótulos.
O meu amor por ti desfez-se em mil pedaços para se voltar a reconstruir e reencontrar de forma verdadeira.
E só assim, passados 27 anos venha quem vier, digam o que disserem, este amor é inabalável.
Porque tudo o que tinha que ser falado entre os dois já o foi.
Porque o amor dá sentido à vida e a vida com amor sente este perdão.
Porque aceito que é mais fácil curar uma perna partida do que uma doença psíquica.
Porque sei que os tempos não foram difíceis, foram terríveis. 

Não te guardo rancores, não te vou amar mais do que amo e já amei, mas sei que amo e que é assim que te quero no meu coração, com amor!

Se a tua cara não engana onde vá, que ganhei a personalidade da mãe também não é novidade.

A ti querida mãe, hoje pouco mas ao mesmo tempo tanto de ti falei.
Os que te conhecem sabem onde te defendo.
Os que te amam acredito que tenham esperado 27 anos para que alguém soasse bem alto que as mentiras são mentiras e tu és muito mais do que tentaram passar!
E durante 27 anos souberam ser e estar nesse silêncio por nós.

Dava tudo para te poder ouvir, para me dizeres se também sou boa mãe e se estou a ir no bom caminho?
Sempre que o Manuel Maria vai para a creche com a roupa mais simples possível sem grandes kits, lembro-me que era assim que me querias. 
Tantas vezes de fato de treino a rebular na quinta entre os cães e a lama.
Obrigada por todas as memórias que me gravaste no coração. 
Por todas as vezes que me protegeste e amaste.
Obrigada por naquele último dia da Primavera teres tido a garra e força de ainda sozinha me teres tido e não desistires de nós!

Sei o que sofreste pois foram muitas as vezes em que sofri contigo.
Sei que não eras perfeita mas sei que foste sempre integra e sincera.
Li um texto num jornal sobre ti que me deixou cheia de orgulho e esse fez-me esquecer todos os outros de sangue que me foram enviados. 

Pouco ou nada te tenho de perdoar, fincaste os pés e ficaste. 
Tinhas de o fazer, as saídas foram poucas.
Deixas umas saudades sem medida, um amor inexplicável e uma presença memorável!

Que eu tenha a tua personalidade para fazer valer o que é tão nosso e no meio de todos os meus defeitos, me consiga ligar apenas aos que de facto são meus e me amparam verdadeiramente. 

Orgulha-te dos teus, que sempre nos souberam amar e abraçar sem se importarem se tinham mais ou menos rótulos.  E ainda o fazem de forma tão pura.


De ti, hoje escrevo pouco porque tu serás o meu livro.

E que sejas lida cheia de alegria e entusiasmo. 
Que a tua força e garra de viver ultrapassem as minhas palavras. 

Acima de tudo, que quem te leia, perceba que a morte não tem de ser a solução.
Mas que tenham presente que acontece. 
E acontece onde e quando menos esperamos.

E com a tua vida em palavras, espero que quem te leia não se cale mais. Que percebam que pôr fim à violência doméstica depende de todos nós.
E já não basta fingir que não se ouve, que não se sabe e ficar na zona de conforto.
Somos todos uma comunidade, temos todos responsabilidades.


27 anos!!






terça-feira, 26 de setembro de 2017

As marcas que vejo continuam ser só as vossas!

As marcas que vejo continuam a ser (só) as vossas!



Cresci a ver na praia as pegadas de quem sabia que me levava ao colo.
Fui tendo em mim, que não eram apenas um par de pegadas mas vários.
Durante o caminho, o vento sussurrou-me que nem todas as pegadas deixavam marca...
Durante o caminho, peixes voadores foram-me mostrando que nem tudo seria como eu via, e ainda assim optei por não ouvir.
Até que a tempestade chegou!
Sem eu querer, sem sequer pedir, o céu mostrou-me que os trovões e as chuvas facilmente levaram as pegadas mais leves.
As que achei que poderiam ficar e que sempre me segurariam...voaram com o vento, tão ou mais rápido que os grãos de areia.
A praia onde estamos pode não ser aquela que acreditámos ser, mas serve para sabermos que o nosso caminho deve evitar areias movediças.
Devemos ter o dobro da atenção quando entramos em águas pouco transparentes e,  perceber sempre quem nos segura e quem nos larga.
Depois disto, o caminho fica mais claro e leve.

Ficam as saudades das pegadas seguras e tão bem vincadas. Aquelas que faziam da areia cimento e eram marca firme de quem me pegava ao colo em todos os momentos.

As marcas que vejo continuam a ser (só) as vossas e essas, caia o céu ou expluda a terra, não me largam! <3 p="">